A negligência é uma forma prevalente de maus-tratos a crianças/adolescentes, associada a diversas consequências negativas ao desenvolvimento infantil. Ela é, entretanto, ainda pouco estudada. As pesquisas internacionais cresceram significativamente nos últimos 20 anos, mas no Brasil o interesse acadêmico pelo tema é incipiente. Assim, sua compreensão, bem como importância se veem afetadas e, por conseguinte, não se percebe projetos ou planos/políticas específicas, a exemplo do que se nota com as outras formas de maus-tratos (os abusos físico e sexual, por exemplo). O presente estudo visou colaborar com a produção de conhecimento sobre esse fenômeno, norteando-se pelo objetivo de caracterizar famílias notificadas por negligência ao sistema de proteção, visando melhor conhecer este fenômeno no contexto sociocultural brasileiro. Lançando mão de uma definição operacional e de indicadores baseados em evidências científicas, visou-se caracterizar as famílias quanto aos padrões de cuidado dispensados aos filhos e a mecanismos considerados fundamentais à negligência: vinculação familiar e acesso/disponibilidade a apoio social. Foram coletados dados junto a 14 participantes, representando 14 famílias notificadas nos Conselhos Tutelares de Ribeirão Preto-SP. Essas responderam oralmente, na forma de uma entrevista, aos seguintes instrumentos: Questionário para Caracterização Socioeconômica e sobre Eventos Adversos na Família; Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales IV; Questionário de Apoio Social; Lista de Verificação Comportamental (CBCL); Roteiro de Entrevista Semi-Estruturada sobre Práticas de Cuidado/Criação dos Filhos e Desenvolvimento Infantil. Os dados coletados com a Entrevista sobre Práticas de Cuidado, especificamente, permitiram o preenchimento do Child Neglect Index (CNI), cujo objetivo é avaliar tipos e severidade da negligência. A avaliação caso a caso, segundo as categorias do CNI, foi feita de forma independente, por dois pesquisadores, que os agruparam, a partir de altos níveis de concordância, em dois grupos: com indicadores consistentes de negligência (ICN) (n = 5) e com indicadores não consistentes de negligência (INN) (n = 9). A partir desse agrupamento, foi realizado um estudo de casos múltiplos para caracterização das famílias nos mecanismos mencionados e em outras variáveis de interesse. Nas famílias do grupo ICN observou-se vinculação familiar frágil, com descrições negativas dos filhos pronunciada, assim como distanciamento afetivo, além da experiência de pouco apoio social. Quanto ao grupo INN, os indicadores de vinculação e de apoio social percebido foram melhores. Observou-se que, em grande parte, as notificações no grupo INN aconteceram em contexto de disputa de guarda. Os grupos ainda se diferenciaram no tocante à violência intrafamiliar (mais recorrente, porém mais normalizada em ICN), assim como na percepção da ação do órgão de proteção (mais negativa/intrusiva no grupo INN). O estudo faz questionar a pertinência da aplicação do rótulo negligência para uma parte da famílias estudadas e aporta subsídios que confirmam a importância dos mecanismos vínculo e apoio social. Apesar dos limites do estudo, baseado em autorrelatos, com uma amostra reduzida, ele deixa claro a necessidade de se estabelecer protocolos de avaliação consistentes, frente às notificações, para que os aspectos relevantes às intervenções psicossociais sejam identificados. Investigações com amostras maiores, com triangulação de métodos, devem ser implementados, para se avançar nesta direção.

Neglect is a prevalent form of child maltreatment, associated with several negative consequences child development. It is, however, still understudied. International research has grown significantly over the last 20 years, but in Brazil academic interest in the subject is incipient. Thus, its understanding, as well as its importance, are affected and, therefore, specific projects or plans/policies are not seen, as is observed with other forms of maltreatment (physical and sexual abuse, for example). The present study aimed to collaborate with the knowledge production about this phenomenon, guided by the objective of characterizing families notified for neglect at the protection system, aiming to better understand this phenomenon in the Brazilian sociocultural context. Using an operational definition and indicators based on scientific evidence, the aim was to characterize families in terms of the standards of care provided to their children and mechanisms considered fundamental to neglect: family bonding and access/availability to social support. Data were collected from 14 participants, representing 14 families notified in the Guardianship Councils of Ribeirão Preto-SP. They responded orally, in the form of an interview, to the following instruments: Socioeconomic Characterization and Adverse Events in the Family Questionnaire; Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scales IV; Social Support Questionnaire; Behavioral Checklist (CBCL); Semi-Structured Interview Guide on Child Care/Raising Practices and Child Development. The data collected with the Care Practices Interview, specifically, allowed the completion of the Child Neglect Index (CNI), whose objective is to assess types and severity of neglect. The case-by-case assessment, according to the CNI categories, was carried out independently by two researchers, who grouped them, based on high levels of agreement, into two groups: with consistent indicators of neglect (ICN) (n = 5) and with inconsistent indicators of negligence (INN) (n = 9). From this grouping, a multiple cases study was carried out to characterize the families in the mentioned mechanisms and in other variables of interest. In the families of the ICN group, a fragile family bond was observed, with pronounced negative descriptions of the children, as well as affective distance, in addition to the experience of little social support. As for the INN group, the indicators of attachment and perceived social support were better. It was observed that, for the most part, the notifications in the INN group took place in the context of a custody dispute. The groups still differed in terms of intrafamily violence (more recurrent, but more normalized in ICN), as well as in the perception of the actions of the protection agency (more negative/intrusive in the INN group). The study questions the relevance of applying the label negligence for a part of the studied families and provides subsidies that confirm the importance of the bond and social support mechanisms. Despite the study limitations, based on self-reports, with a small sample, it makes clear the need to establish consistent assessment protocols, considering the notifications, so that aspects relevant to psychosocial interventions are identified. Investigations with larger samples, with triangulation of methods, must be implemented in order to advance in this direction.